Sobre malandros e manés, winners e losers, grifters e marks - parte 1
Dizer que o capitalismo é um jogo de malandros e otários é clichê... mas no neoliberalismo nada, da política ao consumo de cinema, pode ser entendido sem pensar na malandragem e na otariedade.
Ilustração gentilmente cedida pelo querido Ricardo Coimbra, um dos meus cartunistas favoritos.
Introdução - Uma noite em 97. Ou, o Devir AmWay do neoliberalismo
No último final de semana, assisti a um evento de lançamento do livro A Rebelião dos Manés, de Pedro Fiori Arantes, Maria Luiza Meneses e Fernando Frias. Este não será um texto sobre o livro. O livro fala por si, é brilhante e sempre falará melhor do que as minhas leituras ou críticas sobre o tema.
Na mesa, estavam meus amigos Rodrigo Nunes e Juliano Fiori, além de Miguel Lago. E, depois, fui tomar uma cerveja. Eu e Rodrigo ainda estendemos um pouco. O que segue é a tentativa (relativamente) sóbria de condensar algumas ideias que tivemos ao longo da noite e numa conversa que tive com Ricardo Coimbra, cartunista que gentilmente cedeu esta ilustração para mim.
E aqui vai o resumo: a forma organizativa neoliberal por excelência é a AmWay, então deveríamos adaptar o meme para “Bad Ending: tudo no mundo é marketing multinível”.
Um pouco como aquela cena de Rick and Morty, quando eles vão parar em um planeta onde todas as coisas, do nível atômico até as montanhas, estão dentro de espigas de milho, a organização social que melhor reflete o zeitgeist do nosso tema é um fractal de esquemas de pirâmide.
Eu conheci a AmWay no mundo pré-internet, antes das bombas nucleares caírem sobre a Terra e todos nós vivermos presos em Vaults/Cofres.
Eu era uma criança quando dois de meus primos entraram na AmWay. Para quem não sabe, é uma “empresa” dos EUA com nome de “American Way” (O Caminho Estadunidense). Tudo daqui em diante será ambivalente, razão pela qual cogitei até apelidar este texto de “Dialética da Malandragem” (ou do Malandro e do Otário), mas Antonio Candido escreveu tal texto muito antes de mim, apesar de sobre temas ligeiramente diferentes.
(Eu vou grifar uma palavra ou outra. O objetivo disso é só mostrar um certo realejo temático, uma repetição de esquemas nesse fractal de malandragem. Avisem-me se isso ficou bem-feito e inteligível depois.)
A ambivalência do Caminho Estadunidense grita: a AmWay é simultaneamente uma loja de departamento de bugigangas inúteis, um esquema de enriquecimento rápido e uma seita ideológica potente. Seu sucesso foi tal que, claro, criou todo um mercado, o “marketing multinível”. E, depois, virou a expressão completa da nossa sociedade.
Para quem não entendeu tudo isso, vou relatar o caso. Meu pai e minha mãe, um dia, receberam meus primos, pessoas que eu sempre adorei, para ouvir uma apresentação da AmWay. Eles foram lá em casa.
A primeira coisa que meu pai disse foi algo como: “eu sou um cético rabugento de difícil convencimento, tem certeza que querem fazer isso comigo?”. Meu pai sempre foi muito amoroso com a família da minha mãe, meus primos inclusos, o que, na concepção de amor de meu pai, envolve uma quantidade inesgotável de zombarias e humilhações.
O que meu pai não entendeu é que eram justamente essas características pessoais que meus primos buscavam. Ao longo de uma hora, tentaram explicar como funcionava a AmWay, como era possível ganhar dinheiro apenas consumindo com seus amigos e familiares, como aquilo era uma inovação ímpar.
As respostas de meu pai, claro, eram ácidas e críticas. E meus primos, claro, respondiam e respondiam. Com 20 poucos anos de idade, eles estavam treinando. E, não à toa, eles são dois dos três vendedores dos primos “da Hora”(o terceiro sendo eu, que conviveu muito mais com meu pai).
A AmWay era um esquema de pirâmide. Quem entrava era responsável por um “ramo”. Cada pessoa que ele incluía na AmWay entrava naquele ramo. Havia uma cesta mensal de produtos que todos eram obrigados a comprar, num esquema de assinatura. Um percentual do dinheiro que cada pessoa consumia ia para cada pessoa que estava acima naquele ramo.
A AmWay era uma comunidade. Cada pessoa que ingressava na organização recebia tarefas, missões e promessas de recompensas. Ouvir desaforos do meu pai era uma missão (“treinem bem esse pitch e procurem a pessoa mais difícil que vocês conhecem, para aprender”).
Mas, mais que isso, a AmWay era uma comunidade com suas mitologias. Grandes seminários e reuniões da AmWay lembravam imensas igrejas evangélicas, com testemunhos de superação no palco, cantoria e aplausos. Uma grande comunhão com seus ritos catárticos coletivos.
Acima de tudo, a AmWay era estranha. Seu usuários falavam uma linguagem estranha, com uma caralhada de conceitos ligados ao seu funcionamento. As taxas, os tipos de participantes, os tipos de produtos e vendas.
Havia até uma questão de identidade: os usuários de maior sucesso ganhavam títulos, como diamante, ouro e esmeralda, de acordo com seu sucesso. Esses títulos geravam reconhecimento dentro da AmWay: em seus eventos, havia uma espécie de formatura dos novos diamantes (ou sei lá, é só um exemplo) com chuvas de aplausos do público. Novamente, catarse pública, louvor na igreja do sucesso. O Caminho ou Jeito Americano: consumo e evangelicalismo.
Essa é a questão das seitas. Para seu funcionamento, ela precisa estranhificar seus participantes.
(Aqui, lembro de uma aula que tive com Luís Roberto Barroso, em que ele comentava que, ao entrar na faculdade de Direito, você fica embasbacado com o quanto o jurista fala de forma esquisita. Aí, um dia, está lendo seu TCC e conclui que aquele antro de loucos tornou você mais um daqueles esquisitos.)
A palavra lore ganhou vida hoje. Raiz de “folclore” (folk = povo; lore = conhecimento), lore passou a designar o conhecimento que é requisito de entrada em um grupo ou tribo. Nas redes sociais, o que antes era ligado ao consumo de conteúdo passou a designar tudo… porque, bem, tudo virou conteúdo a ser consumido.
“Ganhar lore das tretas do partido comunista para poder participar” entrou em grau de equivalência a ganhar lore na treta de famosos para assistir ao novo reality show.
É, portanto, o lore que estranhifica o participante da seita. É aquele conjunto de conhecimentos que achamos estranhos quando ingressamos em um novo espaço, que entra em nosso léxico aos poucos e que, depois, nos torna estranhos por esquecer como se fala de forma não estranha.
Direito segundo Barroso. Jones Manoel, Ian Neves e Gaiofato. Tudo começa na AmWay.
Mas, acima de tudo, a AmWay é tudo isso ao mesmo tempo, de forma sincrética. A dinâmica da seita retroalimenta a dinâmica do enriquecimento rápido, que retroalimenta a dinâmica do consumismo, que retroalimenta a seita.
Todos os componentes em sinfonia: coletividade, ideologia e individualidade. Não é um tumor, que se vale das organelas construídas fora dela, mas um parasita, um ser vivo completo que se alimenta de outro ser vivo maior.
E mais, abordando o tema da teoria da mudança: mesmo que esquecida entre o mar de esquemas de pirâmides contemporâneos, a AmWay cresceu até mudar toda a nossa sociedade e servir de parâmetro para construir o ciberespaço.
Quando a internet surgiu com tudo o tempo todo, a curadoria virou uma questão crucial. Quinze anos atrás, eu falava disso: “quando a internet for rápida o suficiente para transmitir toda informação que formos capazes de consumir, por que ela continuaria crescendo? Para as máquinas usarem a internet por nós”.
Certo estava o jovem Caio porque o que vemos hoje é exatamente isso: uso de banda de internet incessantemente produzindo dados sobre nós para decidir o que consumiremos de informação a cada momento.
O consumo de mídia passou de uma curadoria unificadora da sociedade (imprensa, rádio, TV), onde o que todos consumiam era igual, para uma curadoria nichificada, onde um fractal de divisões sociais determinaria o que consumiríamos. Bastava escolher em qual nicho você se incluiria e, assim, receber seu pacote.
A esse processo chamamos interatividade, e muito tecno-utopismo se produziu em cima da ideia de um consumidor-produtor (prosumer, na contração em inglês), alguém cujo ato de consumo determina o resultado da produção.
(Hoje, esse tecno-utopismo morreu e não faltam críticos ao modo como esse processo tornou a arte um fenômeno tão sem vida e brilho que pode até ser feita por uma IA…)
Quando se consome um conteúdo no Netflix, você (i) ajuda a plataforma a te categorizar e recomendar coisas similares; (ii) afina a plataforma para entender padrões de consumo; e (iii) produz dados sobre o tipo de série que deve ser produzida no futuro.
Bem, voltemos àquela fatídica noite na década de 90, quando meu primo apresentou a AmWay ao meu pai. Meu pai indagou com seriedade: “isso é pirâmide, a única razão para essa forma financeira se sustentar e você ganhar dinheiro é a expansão para mais consumidores, o que tem um limite rápido devido à progressão geométrica e, portanto, isso não funciona sem dar prejuízo para alguém”.
Em resumo, é uma pirâmide. Para ter alguém no topo, tem que haver uma base larga, ou seja, muita gente embaixo… e uma hora falta gente para o esquema de pirâmide funcionar.
A resposta do meu primo, contudo, foi emblemática do mundo contemporâneo: observe, tio, que na verdade a lucratividade não vem da expansão infinita, mas do fato de o esquema de expansão da empresa não depender de marketing tradicional. O dinheiro gerado, portanto, é dinheiro que uma grande varejista como a AmWay precisaria investir em marketing e não investe: ela dá para mim e para você.
Esse processo nubla a ideia de produtor e consumidor, de dentro e fora da empresa. O consumidor é a AmWay. Ele é embaixador da marca, ele é divulgador, ele é vendedor.
Sabe o que dirão as teorias mais avançadas de marketing atuais? Que esse é o objetivo da boa marca. Aquela velha anedota de que todo mundo diz que a marca da Coca-Cola é a mais valiosa do mundo, mas são os consumidores da Harley-Davidson que orgulhosamente tatuam o nome da empresa em seus braços.
Ou, claro, o surgimento dos chamados “apple fans” ou “disney adults”: gente de tal forma envolvida com uma marca que se torna um departamento de marketing à parte. O resultado é que o marketing deixou de ser um processo de difusão da marca e seus produtos para ser um processo de gestão de comunidade.
Ninguém quer a venda do produto. Vender produto é pouco. Os profissionais de marketing querem que, quando alguém visite um familiar, esteja lá para ser representante do seu produto.
Sabe, tipo ir na casa do tio, ver a tia e os primos mais novos, mas, no caminho, tentar vender uma mirabolante ideia que, além de levar produtos variados para sua casa, irá te enriquecer.
Agora, reflitam comigo: o que faz uma boa gestão de comunidade? Ela cria e difunde lore. Ela realiza eventos catárticos. Ela remunera, mesmo que só libidinalmente, os envolvidos.
A boa gestão de comunidade produz uma economia, uma forma de viver, mecanismos de alimentação e retroalimentação de participação. Ela busca novos usuários, ela os nutre, ela os torna confortáveis.
Ela aplaude quem cumpre as tarefas e ascende dentro das suas estranhas hierarquias… até como uma forma de quem aplaude se imaginar, num futuro tão próximo que eu quase consigo sentir, lá em cima do palco, sendo aplaudido uma vez na vida.
Sabe… como alguém que viraliza, como um tweet que hitta, como um lacre que fecha.
(Isso encerra a primeira parte do texto. Fique ligado nas demais partes, onde saio da AmWay analógica para entrar na AmWay digital, ou seja, a internet contemporânea. E discuto a extrema-direita, o artigo do Rodrigo Nunes “pequenos fascismos grandes negócios”, parte de seu livro Do Transe à Vertigem, os manés bolsonaristas, os malandros trumpistas, e muito, muito mais)